A Reforma Tributária não é mais uma promessa distante — ela está batendo à porta do varejo brasileiro. E para varejistas que já lidam diariamente com margens apertadas e operações complexas, entender essas mudanças deixou de ser opcional. A chegada do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), o fim da substituição tributária e a exigência de controles fiscais mais precisos representam uma transformação profunda na forma como o varejo opera e precifica seus produtos.
No episódio mais recente do Podcast PDV, conversei com Leandro Cauduro, advogado especialista em Direito Tributário e Empresarial e CEO do Grupo DMC Recuperação Fiscal, para traduzir o que essas mudanças significam na prática. A mensagem é clara: neste novo cenário tributário, não basta apenas pagar imposto — é preciso gerenciar créditos fiscais com precisão cirúrgica e transformar a gestão tributária em vantagem competitiva.
O novo modelo tributário: simplificação que exige mais controle
Hoje, o empresário do varejo precisa lidar com uma complexidade tributária que consome tempo, recursos e aumenta o risco de erros. ICMS com regras diferentes em cada estado, PIS, COFINS, IPI — cada tributo com suas bases de cálculo, exceções e interpretações. A Reforma Tributária promete simplificar esse emaranhado ao unificar os impostos em dois principais: o IBS e a CBS.
Mas atenção: simplificação não significa menos trabalho. Na verdade, o novo modelo vai exigir um controle interno muito mais apurado.
“Com esse novo modelo, a criação do IBS e da CBS, a ideia é simplificar o sistema, mas essa simplificação vai exigir um controle interno muito mais apurado." — Leandro Cauduro
O impacto começa no fluxo de compras. Toda nota fiscal de entrada precisa estar correta, porque é dela que nasce o crédito tributário que a empresa poderá aproveitar. Se o cadastro fiscal do produto estiver errado — um NCM (Nomenclatura Comum do Mercosul) incorreto, por exemplo — o crédito é perdido. E aí a empresa acaba pagando muito mais tributos do que deveria.
Quem estiver organizado vai praticar preços melhores
A formação de preço no varejo sempre foi uma ciência complexa, mas a Reforma Tributária adiciona uma nova camada de estratégia. Muitas empresas hoje precificam sem considerar adequadamente o crédito fiscal que têm direito a recuperar. Com o novo sistema, o imposto estará destacado de forma mais transparente e o crédito será integral.
Isso muda a estrutura de custo, altera a margem e impacta até a política de promoções. Em outras palavras: o preço de venda vai precisar refletir a eficiência fiscal da empresa. E aqui está a oportunidade: quem estiver bem organizado fiscalmente vai conseguir praticar preços melhores sem reduzir margem. A gestão tributária deixa de ser apenas uma obrigação burocrática para se tornar uma ferramenta de competitividade.
O plano de ação em quatro passos
Diante dessa transformação, como o varejista deve se preparar? Leandro Cauduro é direto: não dá para esperar a reforma entrar em vigor para começar a agir. A transição será longa — o ICMS, por exemplo, só será completamente substituído em 2033 — e quem se antecipar vai aproveitar oportunidades que os concorrentes ainda nem perceberam.
O especialista propõe um plano de ação prático em quatro etapas:
Passo 1: Diagnóstico fiscal completo
Entender quanto a empresa paga hoje de tributação e onde pode recuperar valores pagos a mais nos últimos cinco anos. Antes de planejar o futuro, é preciso recuperar o passado.
Passo 2: Revisão do cadastro fiscal dos produtos
Este é o coração da tributação no varejo. NCM, EAN (ou GTIN) — um código errado altera a alíquota, muda o regime e pode eliminar o direito ao crédito. Segundo Leandro Cauduro, em sua experiência com revisão de cadastros fiscais de produtos, erros são identificados em grande parte das análises, muitas vezes acima de 70% dos itens revisados. É muito dinheiro deixado na mesa.
Passo 3: Integração entre fiscal, contábil e compras
Setores que hoje nem sempre conversam entre si vão precisar trabalhar de forma integrada. Se o contador lança uma nota diferente da realidade operacional ou se compras cadastra sem critério, o crédito desaparece. Num sistema onde quase tudo gera direito a crédito, a falta de integração significa dinheiro perdido.
Passo 4: Capacitação da equipe
Investir em treinamento para que a equipe entenda as novas regras do IBS e da CBS. O momento é agora de fortalecer o compliance tributário, mapear riscos e preparar as pessoas para esse novo cenário.
O fim da substituição tributária e os novos mecanismos de controle
Uma das mudanças mais significativas é a revisão da substituição tributária. Hoje, esse mecanismo facilita a arrecadação do governo ao tributar na origem: é mais simples tributar uma fábrica de bebidas do que todos os bares e restaurantes onde o produto é vendido. Com a Reforma Tributária, o imposto passará a incidir sobre o valor agregado em cada etapa, com exceções e regimes setoriais que poderão persistir durante o período de transição.
Mas o governo criou dois instrumentos para evitar a sonegação nesse novo modelo:
Crédito condicionado ao pagamento do fornecedor: A empresa compradora só poderá se creditar de uma operação se a empresa vendedora pagar o seu tributo. Isso transforma cada comprador em fiscal da cadeia de fornecedores, uma mudança significativa na dinâmica comercial.
Split Payment (o "PIX do governo"): Numa operação de compra e venda, a parte referente à tributação será enviada imediatamente aos cofres públicos. Acabou o período em que a empresa retinha o imposto por um mês antes de recolher. Isso impacta diretamente o capital de giro de muitas operações.
"Nesse novo modelo, não é sobre pagar imposto, é sobre gerenciar o crédito e transformar a gestão tributária em uma vantagem competitiva." — Leandro Cauduro
As oportunidades escondidas: recuperação tributária e o problema do cadastro
Enquanto a Reforma Tributária se desenha para o futuro, existe dinheiro sendo deixado na mesa hoje. Leandro Cauduro é categórico: a classificação fiscal dos produtos continua sendo uma das maiores oportunidades de recuperação de crédito no varejo.
O NCM é a identidade tributária de cada item. Se ele está errado, muda tudo: alíquota, crédito, enquadramento, regime de substituição tributária. Um exemplo prático: farinha não é tributada, mas farofa é. Imagine o impacto de classificar incorretamente milhares de produtos ao longo de meses ou anos.
E o problema não está restrito a pequenos varejistas. "A gente já viu muito isso em empresas até médias para grande", conta Leandro. O número de itens é grande, cerca de 80 mil lançamentos de produtos por ano nas lojas, segundo dados da GS1, e o setor fiscal nem sempre consegue acompanhar essa variação.
A boa notícia: é possível retroagir até cinco anos para recuperar valores pagos a mais. O imposto pode ser restituído em espécie ou habilitado como crédito para compensação em operações futuras.
"98% dos nossos clientes supermercadistas têm problemas na classificação fiscal dos produtos." — Leandro Cauduro
O caso especial do açougue: perdas que viram imposto indevido
Perdas são uma realidade inevitável em setores como açougue, padaria e FLV (frutas, legumes, verduras e ovos). Mas quando essas perdas não estão mapeadas, a empresa acaba pagando imposto de renda e contribuição social sobre um lucro que nunca existiu.
No açougue, por exemplo, o processo de desossa gera perdas naturais: osso, sebo, gordura. Cada peça de carne tem um percentual de perda específico. E há ainda as perdas no atendimento, quando o cliente pede para "tirar aquela gordurinha" e o açougueiro descarta o excesso sem registrar.
A solução está em ter um laudo técnico de perdas que mapeie completamente esses processos. Com esse documento, o varejista consegue precificar melhor os produtos, ter uma gestão mais eficiente e, principalmente, pagar menos imposto de renda, porque não faz sentido tributar um produto que não foi vendido.
"O varejo me ensinou que ele precisa ter justiça fiscal. A gente não quer que não se pague imposto. Tem que se pagar, mas nem a menos e nem a mais. Tem que se pagar o tributo correto." — Leandro Cauduro
O cronograma da transição: quando tudo isso acontece
Para quem precisa se planejar, as datas são fundamentais:
2026: Começa a transição. Sai de cena o PIS e a COFINS, entra a CBS. O IPI fica com alíquota zero (adormecido). A partir de janeiro, as empresas serão obrigadas a destacar na nota fiscal o IBS e a CBS.
2027: PIS e COFINS são extintos. A CBS entra em pleno vigor, assim como o Imposto Seletivo (IS). O IPI permanece adormecido.
2029: Começa a transição do IBS, que vai coexistir com o ICMS e o ISS.
2033: Fim da transição. A partir daqui, apenas IBS, CBS, Imposto Seletivo e o IPI em "sono profundo".
Conclusão: a Reforma Tributária representa uma mudança profunda no varejo brasileiro
A Reforma Tributária não é apenas uma mudança de regras. É uma reconfiguração completa da forma como o varejo gerencia seus custos, forma preços e compete no mercado. Os principais aprendizados desta conversa são claros: comece a se preparar agora, faça um diagnóstico fiscal completo, corrija o cadastro dos seus produtos, integre suas áreas e capacite sua equipe.
Quem entender que a gestão tributária é uma ferramenta estratégica, e não apenas uma obrigação burocrática, vai transformar a complexidade da reforma em vantagem competitiva. Porque no novo cenário que se desenha, não basta pagar imposto corretamente.
É preciso entender as regras do jogo e jogar bem.



